sábado, 3 de junho de 2017

INQUIETAÇÃO



Não sei se a senhora vai entender, doutora, mas é como se algo dentro de mim estivesse querendo viver uma vida bem diferente da que vivo atualmente. Parece que tenho o coração de uma pessoa e a vida de outra. Dentro de mim vive um coração que deseja filosofar, escrever, amar sem nenhuma restrição, se aventurar sem nenhum medo pelas ruas da noite, beijar incondicionalmente a qualquer um que se deseje, festejar pelas madrugadas sem nenhuma espécie de culpa cristã, andar na beirada de um arranha-céu no limite entre a vida e a morte. Deseja beber vodca até perceber diante de si o próprio Deus ou o próprio Diabo ou o próprio Nada absoluto. Fumar ervas de terras remotas e deixar a fumaça te levar na fantasia que quiser, apagar da memória os séculos de reflexões religiosas sobre o inferno que por vezes, em noites silenciosas, ainda nos fazem temer um castigo por se estar sendo feliz.
Entende, doutora, meu coração quer experimentar o limite de tudo, escrever obras primas da literatura universal, criar alguma teoria filosófica que resuma em uma fórmula o nosso tempo tão inquieto, compor uma música tão linda que faça alguém chorar sem controle. Ele quer descobrir o que existe na mais profunda caverna do oceano, quer conhecer os confins do universo e observar se o que lá existe vai dar enfim sentido à minha vida. Meu coração quer descobrir se talvez ele não esteja fazendo parte de um filme que está passando em algum cinema em algum lugar de algum universo paralelo.
Entende, doutora? Vê aí se a psicologia pode me ajudar porque eu não aguento mais trazer esse coração no peito. Ele está começando a me agoniar, a transformar meus dias em um sofrimento de eterna insatisfação. Porque meu coração é assim, mas minha vida já nem tanto. Eu passo meus dias estudando as leis e trabalhando com elas e quando me sobra um tempo pra fazer o que meu coração deseja eu caio no sono e durmo. E ele vai ficando cada dia mais pesado e exigente e gritando que estou no caminho errado, que estou desperdiçando minha vida nas burocracias da sociedade e que estou perdendo o mais importante.

Me ajude, doutora, me dê um remédio qualquer que possa me aliviar porque eu preciso de dinheiro e meu coração parece ter se esquecido disso. Eu tenho que pagar contas e comer e todos esses desejos insaciáveis parecem não levar isso em consideração. Mas já está insuportável, por favor me receite alguma coisa!  A realidade não foi feita para esse meu coração e talvez ele estivesse melhor em um mundo ideal que já  não existe. Meu coração foi feito para viver no mundo das ideias, talvez aquele de que Platão falava, e não para esse mundo. Imagine só que sofrimento terrível ter o coração do mundo das ideias preso no mundo da realidade. Me cure, doutora, pelo amor de Deus, não aguento mais me sentir tão insatisfeito! Que sede é essa de uma vida que não posso ter, que fome é essa de uma arte que  não posso expressar. Me salve, doutora, quero alguma pílulas pra transformar meu coração em um coração natural, que não deseje nada além de ter dinheiro, casar e ter filhos e nada mais que isso e para sempre o amém dessa vida. Tire de mim essa alma de artista pois me é penosa, me dê uma química que produza em mim uma alma quieta, simples, da cor do pó da terra e das coisas da vida, resignada, feliz com o pouco, sem ansiedades por questões metafísicas, sem filosofias, me ajude.

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