sexta-feira, 8 de agosto de 2014

NATUREZA DA SOMBRA


                                       


Foi minha mãe quem primeiro percebeu que havia algo errado com minha sombra. Em uma manhã ensolarada ela me parou no quintal e disse:
- Filho, tem algo errado com sua sombra.
Vi apenas que meus contornos estavam meio irregulares, por mais que o Sol irradiasse uma intensa luz.
- Deve ser algum efeito da física que eu esqueci de estudar, mãe, alguma refração solar, sei lá. 
Depois disso fiquei incomodado, pois meus traços começaram a se distorcer cada vez mais, como se o desenho de minha sombra tivesse sido escrito por uma mão trêmula. Ainda culpava algum efeito da física, mas não tinha paciência para estudar essas coisas.
Duas semanas depois minha sombra começou a emagrecer e sua coluna começou a se encurvar. Com espanto percebi que minha sombra estava envelhecendo e se tornando monstruosa, enquanto eu permanecia com minha estrutura corpórea normal. Algo diabólico estava acontecendo.
Mais duas semanas depois e minha sombra passou a tossir sem que eu tossisse e eu juro por Deus Nosso Senhor que eu escutava cada tosse como se minha fosse. Rodando como criança debaixo do Sol percebi que minha sombra não me acompanhava, estava debilitada, já aparentava ter uns noventa anos!!!
Então, em uma sexta-feira atormentada, enquanto eu passava por um cemitério ensolarado, percebi que minha sombra não me acompanhava, ficou ali, agonizando no gramado verde que cobre os mortos. Em menos de uma hora, não sei ao certo, minha sombra respirou violentamente e morreu, desaparecendo gradativamente na luz, como infinitos pontos minúsculos a serem absorvidos pela luz. No exato segundo em que minha sombra deu seu último suspiro ocorreu um lampejo súbito e todas as sombras de tudo o que produz sombra tornou-se invisível para mim.Todos enxergam a sombra de tudo e eu não enxergo a sombra de nada. 
Místicos me disseram que a sombra é a alma e se assim for estou logicamente ferrado. Filósofos e todas as ciências humanas e inumanas, exatas e inexatas passaram a discutir a natureza da sombra, fizeram perguntas como "qual é a essência da sombra", "Em qual órgão físico a sombra está acoplada", "Será a sombra um ente vivo?" e por aí a fora. O fato é que ver ou não ver sombras, ter ou não ter sombras,  não serve para nada, parece-me que a sombra não tem utilidade. Assim, sendo viva ou morta, sendo jovem ou velha, correndo ou tossindo, bem delineada ou agressivamente mal desenhada, cá estamos, nós e nossas sombras, eu um mistério para ela e ela um mistério para mim.

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