Dali demorou a morrer, agonizou por horas como cabia a um bom cristão. Sentiu todos os tipos de dores em todos os lugares possíveis, sem contar os terrores mentais (afinal quem conhece o inferno que se passa na mente de quem está morrendo?). O fato é que ele se separou do corpo com alegria e o prazer de deixar aquela massa dolorosa para trás foi o mais perto que ele chegou do êxtase.
Quando deu por si estava diante de um grande portão que guardava o acesso a um lugar enorme cercado de altos muros. Ao lado do portão um senhor de terno e gravata remexia papéis e carimbos em uma mesa de escritório. Ao se aproximar foi saudado pelo senhor:
- Olá, seja bem vindo ao Pós-morte. É só assinar esses papéis e entrar.
O senhor entregou a ele inúmeras folhas onde só constava uma linha de assinatura sem o nome de ninguém. Assim, ele questionou:
- Mas, nobre guardião, o meu nome não está escrito nesses papéis.
O senhor riu gostosamente, mas logo retomou a expressão de funcionário público e disse:
- Aqui ninguém precisa de nome. Você escreve o nome agora e depois nós cadastramos você.
- Mas...eu não estou pré-cadastrado? - perguntou ele decepcionado.
- Não. Desse lado é você quem se cadastra.
Assinou tudo e ficou admirado ao ver os portões se abrindo e o Paraíso se revelando diante de seus olhos. Porém, antes de o portão se fechar chegou outro falecido para o cadastro. Dali conhecia muito bem aquele que havia chegado, era o Assassino das Esquinas que estampou noticiários com seus crimes horríveis. O senhor do cadastro entregou papéis semelhantes ao Assassino e, após as assinaturas, lhe indicou a entrada para o Paraíso.
Dali ficou indignado e foi tirar satisfações. Voltou para perto do senhor enraivecido.
- Ei, o senhor não pode deixar ele entrar aqui. Esse cara é o Assassino da Esquina, ele matou mais de vinte mulheres!
O guardião deu um leve sorriso e respondeu:
- Amigo, aqui todo mundo pode entrar. Não temos censura, nem juízos morais, nem os dez mandamentos, nem nada semelhante. Todo mundo entra.
Dali já estava vermelho de raiva.
- Mas...e o inferno?
- O inferno é apenas uma história de bicho-papão e também uma piada de mau gosto...não sei bem ao certo. Mas eis a Verdade, todos os que morrem vão parar no mesmo lugar, sem divisões. Não é o máximo?
- Nããããããããão- gritou Dali enquanto observava uma bela prostituta chegar perto do portão. - eu fui à igreja todos os domingos, fiz parte de sete associações de caridade, li aquele livro de cabo a rabo, não fiz sexo fora do casamento (e olha que fui tentado pra cacete.... Bruninha se eu soubesse eu tinha te...), nunca cobicei a mulher do próximo, nunca bebi até cair, nunca usei cocaína nem maconha, nunca assumi que também sentia atração por homens, nunca matei o filho da puta do meu vizinho desgraçado, nunca ofendi meu pai ou mãe, nunca assisti novela, nunca sequer me permiti pensar fora do que permitiam....- nesse ponto Dali já estava chorando desconsolado. O senhor e a prostituta deram palmadinhas de consolo em suas costas. Então o senhor disse amigavelmente:
- É...azar o seu, amigo, azar o seu...
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