sábado, 3 de junho de 2017

INQUIETAÇÃO



Não sei se a senhora vai entender, doutora, mas é como se algo dentro de mim estivesse querendo viver uma vida bem diferente da que vivo atualmente. Parece que tenho o coração de uma pessoa e a vida de outra. Dentro de mim vive um coração que deseja filosofar, escrever, amar sem nenhuma restrição, se aventurar sem nenhum medo pelas ruas da noite, beijar incondicionalmente a qualquer um que se deseje, festejar pelas madrugadas sem nenhuma espécie de culpa cristã, andar na beirada de um arranha-céu no limite entre a vida e a morte. Deseja beber vodca até perceber diante de si o próprio Deus ou o próprio Diabo ou o próprio Nada absoluto. Fumar ervas de terras remotas e deixar a fumaça te levar na fantasia que quiser, apagar da memória os séculos de reflexões religiosas sobre o inferno que por vezes, em noites silenciosas, ainda nos fazem temer um castigo por se estar sendo feliz.
Entende, doutora, meu coração quer experimentar o limite de tudo, escrever obras primas da literatura universal, criar alguma teoria filosófica que resuma em uma fórmula o nosso tempo tão inquieto, compor uma música tão linda que faça alguém chorar sem controle. Ele quer descobrir o que existe na mais profunda caverna do oceano, quer conhecer os confins do universo e observar se o que lá existe vai dar enfim sentido à minha vida. Meu coração quer descobrir se talvez ele não esteja fazendo parte de um filme que está passando em algum cinema em algum lugar de algum universo paralelo.
Entende, doutora? Vê aí se a psicologia pode me ajudar porque eu não aguento mais trazer esse coração no peito. Ele está começando a me agoniar, a transformar meus dias em um sofrimento de eterna insatisfação. Porque meu coração é assim, mas minha vida já nem tanto. Eu passo meus dias estudando as leis e trabalhando com elas e quando me sobra um tempo pra fazer o que meu coração deseja eu caio no sono e durmo. E ele vai ficando cada dia mais pesado e exigente e gritando que estou no caminho errado, que estou desperdiçando minha vida nas burocracias da sociedade e que estou perdendo o mais importante.

Me ajude, doutora, me dê um remédio qualquer que possa me aliviar porque eu preciso de dinheiro e meu coração parece ter se esquecido disso. Eu tenho que pagar contas e comer e todos esses desejos insaciáveis parecem não levar isso em consideração. Mas já está insuportável, por favor me receite alguma coisa!  A realidade não foi feita para esse meu coração e talvez ele estivesse melhor em um mundo ideal que já  não existe. Meu coração foi feito para viver no mundo das ideias, talvez aquele de que Platão falava, e não para esse mundo. Imagine só que sofrimento terrível ter o coração do mundo das ideias preso no mundo da realidade. Me cure, doutora, pelo amor de Deus, não aguento mais me sentir tão insatisfeito! Que sede é essa de uma vida que não posso ter, que fome é essa de uma arte que  não posso expressar. Me salve, doutora, quero alguma pílulas pra transformar meu coração em um coração natural, que não deseje nada além de ter dinheiro, casar e ter filhos e nada mais que isso e para sempre o amém dessa vida. Tire de mim essa alma de artista pois me é penosa, me dê uma química que produza em mim uma alma quieta, simples, da cor do pó da terra e das coisas da vida, resignada, feliz com o pouco, sem ansiedades por questões metafísicas, sem filosofias, me ajude.

domingo, 14 de maio de 2017

O PADRE E A PROSTITUTA


A missa está tão bonita, olha só quanta gente! Acho que tem umas trezentas pessoas aqui celebrando a festa da páscoa, a igreja está lotada! O bispo vai ficar impressionado pois ele mesmo estava dizendo por aí que minha paróquia estava em decadência, decadência o cacete. Ah...e por falar em bispo, olha ali um dos seus espiões, padre Belmiro! Esse padre nem reza mais missas, o único objetivo da vida dele é andar de paróquia em paróquia fazendo relatórios. Senhor Jesus, nem na Páscoa ele deixa o ofício, o Senhor está ressuscitando e ele vem tentar encontrar defeitos na minha paróquia...que o diabo o leve! Nossa, estou me irritando e tenho que levar essa missa adiante, afinal tenho mais de quatrocentas pessoas aqui hoje e tudo deve correr à mil maravilhas.
Olha ali o sorrisinho do Belmiro só de olho no meu coral. Realmente o ponto mais fraco dessa missa é a música, uns três estão cantando e uns sete estão desafinando terrivelmente. Agora está escrevendo seus apontamentos desabonadores naquele caderninho ridículo. Ah se eu pudesse eu interromperia essa missa e iria socar a cara dele. Imagine só, hoje é a Páscoa, a festa mais importante de todas e esse desgraçado querendo fazer a minha caveira! Senhor todo-poderoso, que sua luz divina receba essas oferendas...preciso me concentrar.
Tudo  correndo bem e agora vem a comunhão, o ápice da missa. Olha lá a carinha de desdém do Belmiro, todo entediado por não encontrar mais nenhum defeito e muito menos uma paróquia em decadência. Estou distribuindo a comunhão para os filhos de Deus, que coisa mais linda e ... o que?! Espera aí, o que é isso??? Quem é aquela?! Minha Nossa Senhora da Piedade!!!Como alguém vem com um short tão curto e praticamente um sutiã para missa?! Essa mulher na fila da comunhão com certeza é a prostituta da Rua da Consolação, roupa curta, perfume forte, seios...não...não tem nada nos seios não...pernas...não..nossa...que Deus me ajude! Como essa mulher se atreve a entrar na fila da comunhão se agora de pouco estava se vendendo lá na esquina, eu bem que vi?! Todas as pessoas estão escandalizadas, os devotos a olham com extrema reprovação, olham pra ela e depois pra mim, pra ela e depois pra mim e a fila vindo e ela chegando mais perto, o perfume cada vez mais forte e os seios...não...os seios não. O Belmiro abriu um sorriso diabólico e eu já estou suando, ele deve estar esperando pra ver o que eu vou fazer e se tudo estará de acordo com o Código Canônico. E meu Deus, será que o Código canônico fala algo sobre sobre dar comunhão para alguém em pecado mortal sem confissão?  Doutrinariamente eu não posso, mas como vou negar a comunhão a alguém? O que eu devo fazer?
Tenho pouco tempo pra decidir e o Belmiro só está faltando pegar um balde de pipocas pra assistir o que vai acontecer, que padre mais filho da... A mulher está a três pessoas de mim e agora consigo ver seus olhos que são tão lindos e estão marejados de lágrimas. Nossa, ela está muito emocionada e parece estar segurando o choro, os devotos a olham com ódio a ponto de me deixarem com medo . Ela é tão linda e está tão triste,  já caem lágrimas de seus olhos e...pronto...ela está diante de mim e seu olhar me confunde, suas mãos em concha aguardam o corpo sagrado de Cristo e eu não sei o que fazer. Olha só que olhos mais lindos e cheios de lágrimas e a igreja agoniada esperando eu rejeitar a hóstia a essa mulher. O Belmiro até levantou do banco, padre filho da puta, e na minha frente uma mulher quase sem roupa com os olhos brilhantes de piedade. Mesmo de longe consegui ver os olhos do Padre Belmiro ávidos por sangue e observei os olhos dos fiéis suplicando uma humilhação pública. Já nos olhos lindos e sensuais dessa mulher vi o reflexo do crucifixo com Cristo morto. Jesus, o que o Senhor quer que eu faça? É o seu corpo aqui, é o senhor quem manda. Eu posso fingir um desmaio mas aí eu vou derrubar tudo no chão. Talvez eu possa dar as hóstias para o coroinha segurar e desmaiar depois mas vai ficar muito fingido.
Estou com tontura, estou tão nervoso e...ahhhhhhhh...que esse padre Belmiro vá se foder e que todo mundo aqui vá se foder também, eu vou dar a hóstia pra ela sim! Veja os olhos desse povo, malignos, parecem lobos famintos! Veja o padre Belmiro, acho que foi tomado pelo diabo esse filho de uma puta. Eu vou dar a hóstia pra ela sim, pronto, aqui minha filha, receba o corpo de Cristo e vá com Deus, eu nem queria ser padre mesmo e não vou trair minha consciência pra agradar quem quer que seja. Quem sou eu pra decidir a quem Jesus é dado ou não? Ainda mais eu que sou carne e osso  e que quase estou indo atrás dos seios dessa mulher, mas  tenho consciência da minha missão e...a mulher abriu um sorriso lindo e vai dizer algo:
- Obrigada. - Uma única palavra, simples e rápida,  dita com um expressivo sorriso. E foi o sorriso mais lindo que eu já vi, verdadeiramente divino, verdadeiramente sagrado e me deu tanta paz que me senti justificado. Como essa mulher é linda! Ela se virou e foi embora para não ser atacada pelo povo que ficou estupefato e em silêncio mortal olhando pra mim. Padre Belmiro anotava freneticamente em seu caderninho, com certeza coisas terríveis sobre mim.
A missa demorou uma eternidade pra acabar como se os minutos tivessem se tornaram horas. Após a benção o povo se apressou em ir embora deixando a igreja vazia e minha carreira sacerdotal  arruinada.  
 Logo veio padre Belmiro, a passos lentos, batendo a caneta no caderninho como se estivesse fazendo uma música. Trazia um sorrisinho vitorioso no rosto e um olhar de hiena diabólica que despertou em mim uma vontade insana de encharcá-lo com água benta e ácido sulfúrico pra ver se o diabo tomava jeito e...Que Deus tenha piedade de mim. Com certeza eu logo seria afastado e já estava sentindo a tristeza disso tudo, afinal, eu queria ser padre sim, era a única coisa que eu sabia fazer. Belmiro finalmente se aproximou de mim, deu dois tapinhas nas minhas costas, olhou nos meus olhos  e disse teatralmente:
- Resposta correta, reverendo, resposta correta.- E me entregou um papel com uma avaliação positiva da paróquia, uma nota 10 e uma carinha sorrindo desenhada dentro do zero. Virou as costas e foi embora rindo e o seu risinho repetitivo (hi,hi,hi,hi,hi,hi,hi,hi,hi,hi) me acompanhou por todas as minhas missas futuras. É...não deixa de ser um padre bem filho da puta. 

quinta-feira, 4 de maio de 2017

UNIVERSO PARALELO


Sinto-me como se estivesse entrando em outro universo, um universo paralelo onde não existe Sol nem Lua,  apenas um astro feito de luzes neon de cores variadas e onde o ambiente sonoro é ocupado totalmente por músicas eletrônicas. Nesse universo não existe água, mas sim álcool e ele é como o líquido sagrado que brota de nascentes, forma rios e oceanos e faz todos permanecerem num estado de alegria constante e inspiração artística infinita. Estamos em outro universo, o mundo real está suspenso lá fora. O eu que aqui dança não é o mesmo que lá fora senta na frente de um computador e vive as burocracias das normas pois aqui não há regras e nem leis, não existe medo da morte e nem medo da dor e nem medo do amor porque aqui o amor não existe. Será que alguém aqui conhece a tristeza? Duvido muito, aqui não há tristeza, mas vi um rapaz chorando no banheiro em completo desalento e não sei ao certo o que ele faz aqui pois aqui não há lágrimas. Esse moço que chora é como um desajustado, um ser anormal e nesse universo não são aceitas pessoas assim. Dê a ele um banho dessa bebida luminosa e deixe que ele renasça como um dos nossos, cheio de glória e alegria e sem o pesar da moral. Aqui não temos Jesus, nem Buda, nem ninguém dessa estirpe e mesmo assim talvez eu possa encontrar algum desses sussurrando que algo está errado e que o inferno nos espera. Mas ninguém aqui liga pra isso pois estamos verdadeiramente bêbados e trocamos todos os mestres espirituais por qualquer poeta da noite, poetas que desceram à essência humana e a traduziram em palavras, não espírito, não conjunturas metafísicas, mas sim carne e dor e amor e alegria e amor de novo e talvez a sombra de algum mistério por trás disso, uma alma, um subconsciente e talvez não exista nada disso.
Encontrei as divindades desse universo e elas estão nuas, mulheres e homens que dançam em um palco sem roupa, rodeados de devotos de olhos brilhosos, sim, são os deuses daqui numa espécie de Olimpo de adoração e eu também os venero de joelhos...deuses desse mundo, tenham piedade de mim, olhem por mim, me protejam nessa noite tão curta, me defendam dessas bocas cheias de vodca e me concedam os lábios daquele ali no canto...e esse redemoinho que gira e gira e gira e gira e gira e nem sei se estou em pé ou deitado ou talvez estou levitando, mas isso não existe ou existe? Talvez eu tenha uma alma e talvez ela esteja nesse momento saindo do meu corpo (o que tinha no meu copo?) .
Toquei um dos deuses que dançavam no palco e ele me levou à sua morada escura, talvez aqui seja o Hades e este seja um deus de um submundo pois aqui é tão escuro e ao mesmo tempo tão luminoso, caminhos longos e cheios de seres misteriosos com seus sons de prazer. Estou com essa divindade e nos envolvemos na dança sagrada, será esse o êxtase que dá sentido a nossa vida? Há algo que seja superior a esses gemidos? Dizem que sim, porém por vezes penso que não e na realidade não sei de nada.
As luzes se acendem repentinamente e os vórtices que abri no Universo pedem que eu retorne ao meu mundo de origem, mundo de papéis e livros, mundo de discursos religiosos e de contas, de amores mal resolvidos e de questões filosóficas incômodas. Luzes malditas, por que vocês não me deixam aqui para sempre? Então o assombroso silêncio se une à luz forte e imediatamente já estamos novamente no Mundo Profano e toda a sacralidade se perde e já não existem divindades, apenas seres humanos com olheiras profundas que aguardam a dominação do sono.
O dinheiro volta a existir, pago a conta e coloco meu pé na rua onde o Sol começa a se levantar.  Meu Deus, o Sol voltou a existir e parece que queima minha pele que se grudou ao éter da noite.
Pronto... agora vou caminhando para ver se lembro ou se esqueço...pouco a pouco...quem eu sou de verdade.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

SOU MUITOS




Não sou apenas um, sou muitos. Sou o santo que reza no deserto e sou o pecador que gabaritou os sete pecados capitais. Sou a paz que se manifesta na meditação e sou a violência que fere meus irmãos. Sou Deus que governa o Universo e sou o verme que se rasteja no solo. Sou homem, mulher, criança, adulto, jovem, velho. Sou ser humano, sou cachorro, peixe, por vezes até inseto sou. Sou o devoto de Cristo que derrama lágrimas pelos próprios pecados e sou o cético que não acredita mais no pecado e no castigo. Sou o filho de Buda que só deseja a paz na mente, mas também sou o filho dos seres das sombras que deseja a vingança pelo mal que nos foi feito. Sou aquele que se arrepia com os acordes de Mozart e também aquele que movimenta os pés nas batidas de um funk barato. Sou aquele que recebe o santo no terreiro e aquele que se aquieta em meditação longe de tudo e de todos. Sou aquele que venera os santos de todas as religiões e acredita em todos os credos e também o ateu que não acredita em nada. Sou aquele que chora ao ler tragédias nos jornais, mas também sou aquele que comemora a morte de um assassino cruel. Sou aquele que discute por muito pouco e aquele que tolera ofensas terríveis. Já vi o Diabo e hoje não acredito em sua existência. Tenho a mente de um celibatário com votos de castidade mas tenho o coração de uma prostituta libertina e isso resume muitos dos meus problemas. 
Sou Peixes, Áries, sagitário, aquário, filho de Oxóssi, Omolu, Oxum, Iemanjá, sou de todos esses mas nenhum desses são meus.
Durante muito tempo tentei ser um só, solucionar esse enigma, me encontrar, realizar meu destino, conhecer o que sou. Porém um sábio que veio de muito longe disse que o "meu eu de muitos eus" é a minha forma de ser um só. Não sou um, sou muitos, mas nesses muitos sou um só.

domingo, 23 de agosto de 2015

BICHO-PAPÃO



A menina vestia seu pijamas da Disney e se agarrava a seu coelhinho de pelúcia enquanto dormia profundamente. Observando de perto vemos uma expressão serena e um ritmo de tranquilidade em sua respiração. Então, de repente, ouve-se um barulho estranho, como se uma unha monstruosa arranhasse uma lousa. Nossa menina acorda assustada e olha para todos os lados de seu quarto. O que poderia ser? O que causou esse barulho ? Olhou para a sombra que as luzes da rua faziam na parede e parece ter visto uma silhueta humana.  Apavorada a menina forçou a vista para ter a certeza do que era  e o que viu foi mais apavorante do que um espírito ou demônio, mais surpreendente  do que qualquer personagem do folclore de terrores infantis.
Nas sombras, sabe-se lá por que diabrura ou magia, a menina viu todas as suas dores, todas as pessoas que iriam machucar seu coração, viu todos os rapazes que a deixariam chorando em fins de semana infinitos, viu todos os dias que passaria nos hospitais com doenças diversas que a miséria do mundo faz surgir, viu todos os amigos que iriam seguir suas vidas deixando assim que ela vivesse a dela, viu a morte de seus entes queridos e a passagem incontestável dos dias marcando sua face com a velhice, viu todas as suas derrotas e todos os seus inimigos. Seus olhos estavam enormes de terror e não sabia nem como interpretar tudo isso.
Então, por um impulso foi até a janela e olhou para o lampião que projetava sua luz sobre o quarto provocando as pavorosas sombras. E, para sua maior surpresa, quando fixou seu olhar na luz que a cegava viu todas as suas alegrias, viu os rapazes que a amariam profundamente e que ao abandoná-la a deixariam mais forte e madura, viu todas as pessoas que lhe faria dar gargalhadas a ponto de chorar de rir, viu as seríssimas conversas com amigos de confiança onde ela sentia que poderia contar absolutamente tudo, viu todas as vezes que sairia do hospital completamente saudável e todos os dias de vida renovada. Viu todas as sessões de cinema, todos os passeios na natureza, a beleza das praias, o amor de seus familiares que nunca poderá ser descrito, sentiu o cheiro dos diversos churrascos, contemplou os natais e os presentes, cada ano novo, cada prece atendida, cada abraço dado ou recebido, cada beijo, cada email de amor.  Viu sua velhice cheia de histórias onde cada cabelo branco lhe revelava o sentido de todas as coisas e onde cada peça de quebra-cabeça tomava o seu devido lugar. Viu todos os sorrisos de todos os seres, viu toda a bondade e compaixão em milhares de pessoas, viu o Sol que iluminaria todos os seus dias.
A menina voltou-se então para a parede de sombras onde ainda passavam todos os terrores de sua vida, e disse resoluta:
- Eu não tenho medo!

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

CARTOMANCIA DA MINHA PRÓPRIA FACE



Nunca fui de acreditar em ciganas e tarólogas... bom... mentira... sempre fui de acreditar nessas coisas e não vou começar nossa amizade mentindo pra vocês. Pronto, vou começar jurando sinceridade absoluta, estou cansado de mentiras, especialmente as que contei pra mim durante minha vida. Assumo então que sempre acreditei em ciganas  e tarot e esoterismo e quiromancia e espíritos e Deus e Jesus e Buda e Mestres ascensionados e yoga e Krishna e pensamento positivo e magia e pedras e felicidade e tudo o mais que parecer digno dessa lista. E talvez agora, ao ler minha lista, alguns já desistirão desse texto levantando seus manuais de filosofia e torcendo o nariz. A todos vocês que pretendem esfregar Marx e Sartre no meu texto peço encarecidamente que vão se foder  para sempre.
Iniciando novamente agora:
Sempre fui de acreditar em ciganas e tarot e por isso naquele dia aceitei o convite (mentira, fui por que quis mesmo)  pra ir em uma famosa tenda da Cigana Rosa Maria, lugar famoso, mas a que eu morria de medo de colocar o pé (vai saber né). Entrei na tenda tremendo literalmente e de olhos arregalados. Reparei logo na casa simples, na sala com um sofá e uma mesinha de centro, no incenso que impregnava o local e na própria cigana, uma mulher gorda e vestida com calça jeans e camisa amarela. Não sei que tipo de cigana se vestia daquele jeito e fiquei extremamente desapontado, com certeza ela era ruim e eu iria desperdiçar o meu dinheiro.
Sentei-me diante dela e ela colocou o seu baralho em cima da mesinha. Espalhou as cartas organizadamente em cima da mesa e acendeu um cigarro fedorento. Depois olhou fixamente em meus olhos e me perguntou:
- O que você quer saber?
Fui lá com um só interesse e era saber sobre o andamento futuro de minha vida em geral. Assim perguntei:
- Quero saber sobre o futuro de todas as áreas da minha vida.
A cigana deu uma longa tragada no cigarro e me olhou de cima a baixo terminando em meus olhos. Olhou para minhas mãos que ainda tremiam e para meus olhos onde ela lia sei lá que mistério, colocou as mãos nas cartas e sem virar nenhuma pra cima disse:
- Em breve você terá muitas doenças que se seguirão uma à outra,podendo até morrer bem jovem.  Você não vai conseguir nada de novo em sua vida profissional, vai continuar no mesmo lugar em que está e se não cuidar pode até ser demitido. Na vida amorosa tudo vai continuar igual, você vai continuar solteiro e sem ninguém, tem muitas chances de você nunca se casar. É o que eu vejo.
Olhei pra ela muito assustado e me enraiveci. Ela nem tinha virado as cartas, ela não leu o tarot. Como poderia estar falando aquelas coisas pra mim?
- Mas você nem leu o tarot, não tem como você saber essas coisas. Eu já fui em muitas tarólogas e sei que eu tenho que escolher algumas cartas e você vai interpretar.
Ela soltou a fumaça do cigarro para o alto e disse:
- Não preciso ler o tarot no seu caso, as cartas que eu preciso ler já estão estampadas em você. Suas mãos tremendo formam uma carta chamada O MEDO que mostra sua falta de coragem diante da vida e do desconhecido. Essa carta me mostra que você já vive agora os sofrimentos do futuro, que já está doente com as doenças do futuro, que já chora os fracassos que vão acontecer, que já lamenta sua solidão eterna. Seus olhos me mostram uma carta muito importante chamada A CRIANÇA, uma carta que indica com clareza que você não é um adulto ainda, que você pensa que ainda é uma criança indefesa e que fantasmas e bicho-papões te observam do escuro esperando o melhor momento pra te pegar. O modo discreto pelo qual você entrou aqui, tomando cuidado para não ser visto, mostra outra carta, A SOCIEDADE. Essa carta demonstra que você não vive por sua própria vontade, mas pela vontade alheia, Você sacrifica qualquer coisa que realmente queira se alguém impróprio estiver olhando. Some tudo isso e você mesmo pode deduzir o seu futuro em todas as áreas de sua vida. Com certeza, você só encontrará infelicidade e eu não posso fazer nada por você. 
Fiquei vermelho de raiva, me levantei violentamente quase derrubando a mesinha.
- Quanto custou a consulta?
Ela sorriu:
- Nada, usei o seu tarot e não o meu. Da próxima vez que pensar em ir a uma cartomante, se olhe no espelho primeiro.
Nunca mais voltei nessa cigana, imagine só,  uma cigana de verdade não se veste com calça jeans.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

NATUREZA DA SOMBRA


                                       


Foi minha mãe quem primeiro percebeu que havia algo errado com minha sombra. Em uma manhã ensolarada ela me parou no quintal e disse:
- Filho, tem algo errado com sua sombra.
Vi apenas que meus contornos estavam meio irregulares, por mais que o Sol irradiasse uma intensa luz.
- Deve ser algum efeito da física que eu esqueci de estudar, mãe, alguma refração solar, sei lá. 
Depois disso fiquei incomodado, pois meus traços começaram a se distorcer cada vez mais, como se o desenho de minha sombra tivesse sido escrito por uma mão trêmula. Ainda culpava algum efeito da física, mas não tinha paciência para estudar essas coisas.
Duas semanas depois minha sombra começou a emagrecer e sua coluna começou a se encurvar. Com espanto percebi que minha sombra estava envelhecendo e se tornando monstruosa, enquanto eu permanecia com minha estrutura corpórea normal. Algo diabólico estava acontecendo.
Mais duas semanas depois e minha sombra passou a tossir sem que eu tossisse e eu juro por Deus Nosso Senhor que eu escutava cada tosse como se minha fosse. Rodando como criança debaixo do Sol percebi que minha sombra não me acompanhava, estava debilitada, já aparentava ter uns noventa anos!!!
Então, em uma sexta-feira atormentada, enquanto eu passava por um cemitério ensolarado, percebi que minha sombra não me acompanhava, ficou ali, agonizando no gramado verde que cobre os mortos. Em menos de uma hora, não sei ao certo, minha sombra respirou violentamente e morreu, desaparecendo gradativamente na luz, como infinitos pontos minúsculos a serem absorvidos pela luz. No exato segundo em que minha sombra deu seu último suspiro ocorreu um lampejo súbito e todas as sombras de tudo o que produz sombra tornou-se invisível para mim.Todos enxergam a sombra de tudo e eu não enxergo a sombra de nada. 
Místicos me disseram que a sombra é a alma e se assim for estou logicamente ferrado. Filósofos e todas as ciências humanas e inumanas, exatas e inexatas passaram a discutir a natureza da sombra, fizeram perguntas como "qual é a essência da sombra", "Em qual órgão físico a sombra está acoplada", "Será a sombra um ente vivo?" e por aí a fora. O fato é que ver ou não ver sombras, ter ou não ter sombras,  não serve para nada, parece-me que a sombra não tem utilidade. Assim, sendo viva ou morta, sendo jovem ou velha, correndo ou tossindo, bem delineada ou agressivamente mal desenhada, cá estamos, nós e nossas sombras, eu um mistério para ela e ela um mistério para mim.