Não sei se a senhora vai
entender, doutora, mas é como se algo dentro de mim estivesse querendo viver
uma vida bem diferente da que vivo atualmente. Parece que tenho o coração de
uma pessoa e a vida de outra. Dentro de mim vive um coração que deseja
filosofar, escrever, amar sem nenhuma restrição, se aventurar sem nenhum medo
pelas ruas da noite, beijar incondicionalmente a qualquer um que se deseje,
festejar pelas madrugadas sem nenhuma espécie de culpa cristã, andar na beirada
de um arranha-céu no limite entre a vida e a morte. Deseja beber vodca até
perceber diante de si o próprio Deus ou o próprio Diabo ou o próprio Nada
absoluto. Fumar ervas de terras remotas e deixar a fumaça te levar na fantasia
que quiser, apagar da memória os séculos de reflexões religiosas sobre o
inferno que por vezes, em noites silenciosas, ainda nos fazem temer um castigo
por se estar sendo feliz.
Entende, doutora, meu coração
quer experimentar o limite de tudo, escrever obras primas da literatura
universal, criar alguma teoria filosófica que resuma em uma fórmula o nosso
tempo tão inquieto, compor uma música tão linda que faça alguém chorar sem
controle. Ele quer descobrir o que existe na mais profunda caverna do oceano,
quer conhecer os confins do universo e observar se o que lá existe vai dar
enfim sentido à minha vida. Meu coração quer descobrir se talvez ele não esteja
fazendo parte de um filme que está passando em algum cinema em algum lugar de
algum universo paralelo.
Entende, doutora? Vê aí se a
psicologia pode me ajudar porque eu não aguento mais trazer esse coração no
peito. Ele está começando a me agoniar, a transformar meus dias em um
sofrimento de eterna insatisfação. Porque meu coração é assim, mas minha vida
já nem tanto. Eu passo meus dias estudando as leis e trabalhando com elas e
quando me sobra um tempo pra fazer o que meu coração deseja eu caio no sono e
durmo. E ele vai ficando cada dia mais pesado e exigente e gritando que estou
no caminho errado, que estou desperdiçando minha vida nas burocracias da
sociedade e que estou perdendo o mais importante.
Me ajude, doutora, me dê um
remédio qualquer que possa me aliviar porque eu preciso de dinheiro e meu
coração parece ter se esquecido disso. Eu tenho que pagar contas e comer e
todos esses desejos insaciáveis parecem não levar isso em consideração. Mas já
está insuportável, por favor me receite alguma coisa! A realidade não foi feita para esse meu
coração e talvez ele estivesse melhor em um mundo ideal que já não existe. Meu coração foi feito para viver
no mundo das ideias, talvez aquele de que Platão falava, e não para esse mundo.
Imagine só que sofrimento terrível ter o coração do mundo das ideias preso no
mundo da realidade. Me cure, doutora, pelo amor de Deus, não aguento mais me
sentir tão insatisfeito! Que sede é essa de uma vida que não posso ter, que
fome é essa de uma arte que não posso
expressar. Me salve, doutora, quero alguma pílulas pra transformar meu coração
em um coração natural, que não deseje nada além de ter dinheiro, casar e ter
filhos e nada mais que isso e para sempre o amém dessa vida. Tire de mim essa
alma de artista pois me é penosa, me dê uma química que produza em mim uma alma
quieta, simples, da cor do pó da terra e das coisas da vida, resignada, feliz
com o pouco, sem ansiedades por questões metafísicas, sem filosofias, me ajude.